Eu gostaria de ser uma palavra
 



Cronicas

Eu gostaria de ser uma palavra

Marcela Varasquim


Se um dia eu tirasse folga de ser gente, gostaria de ser uma palavra. Não um texto inteiro, nem uma conversa toda. Apenas uma palavra. Solta, livre, simples, escrita suavemente em um papel sem pauta. Não papel de caderno preso ao espiral, nem de livro sufocado pela brochura. Mas um pedaço de papel que voa leve pelos cômodos da casa. Que às vezes se perde, às vezes é perdido. E que se deleita em uma existência suave - de tão profunda, parece nem ter importância.

Eu, palavra, gostaria de morar nesse papel sem medo de ser dissolvida pelo tempo. Gostaria de ser grafada em letra cursiva e à lápis - para poder ser apagada, quando não fosse mais necessária. E por poder ser apagada, poderia ser escrita novamente. Por mãos mais delicadas, talvez. Para fins mais generosos. Para ensinar uma criança a ler, ou um adulto a se lembrar do que precisa comprar no mercado. Para agradecer um favor, e pedir outro. E assim conectar tantos mundos: o mundo inteiro caberia em mim.

Eu gostaria de ser uma palavra nas mãos de um escritor habilidoso. Ou na boca de uma senhora bem vivida, experiente e bonita. Gostaria de dizer muito em poucas sílabas, de mudar de direção quem já cansou de seguir reto demais. Quantas funções, muito além da sintática, eu teria! Uma palavra não morre – talvez seja esquecida por um tempo. Mas depois é redita, em outro lugar, em outro idioma, em outro milênio. Ressurge transformada, com mais ou com menos letras, com mais graça. Teria uma vida doce, viajaria pelo mundo, ganharia outros sotaques. Eu gostaria de ser palavra, mas sou gente. E gente... bom, gente é ocupada demais para ser palavra.

 

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